“Da política vou sair com os pés na frente”, disse o ex-guerrilheiro tupamaro, que governou o Uruguai entre 2010 e 2015.
Sua morte – anunciada nesta terça-feira (13/5) pelo presidente uruguaio, Yamandú Orsi, em mensagem pelo X (antigo Twitter). Mujica tinha 89 anos.
Pela simplicidade que viveu como presidente, suas críticas ao consumismo e as reformas sociais que promoveu — incluindo a que fez do Uruguai o primeiro país do mundo a legalizar a maconha —, Mujica foi uma figura emblemática para a esquerda da América Latina.
Sua popularidade teve alcance global, algo inusitado para um mandatário uruguaio, ainda que, dentro do próprio país, de 3,3 milhões de habitantes, seu legado gere controvérsias.
‘Uma corrida infinita’
Durante seu mandato, José Mujica não se mudou para a residência presidencial, como costumam fazer os chefes de Estado ao redor do mundo.
Preferiu continuar, junto com a esposa, a ex-guerrilheira Lucía Topolansky, vivendo em sua modesta casa em um sítio nos arredores de Montevidéu, sem empregados domésticos, e com pouca segurança. O casal nunca teve filhos.
A isso, soma-se seu estilo informal de se vestir, o hábito de dirigir um velho Fusca azul-celeste de 1987, e a decisão de doar grande parte do seu salário, o que lhe rendeu o título na imprensa de “o presidente mais pobre do mundo”.
Mas Mujica, conhecido em seu país pelo apelido de “Pepe”, sempre rejeitou esse rótulo.
“Dizem que sou um presidente pobre. Não, eu não sou um presidente pobre”, disse em entrevista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
“Pobres são os que querem sempre mais, que não se satisfazem com nada”, afirmou. “Esses são pobres, porque entram em uma corrida infinita. E não terão tempo suficiente na vida.”
‘Anos de solidão’
Embora muitos o enxergassem como alguém fora da classe política, Mujica nunca foi um ‘outsider’.
Dizia que sua paixão pela política, assim como pelos livros e pela terra, vinham de sua mãe, que o criou, junto com sua irmã mais nova, em um lar de classe média. Seu pai morreu quando tinha apenas 7 anos.
Quando jovem, foi militante do Partido Nacional, uma das forças políticas tradicionais do Uruguai, que mais tarde faria oposição de centro-direita ao seu governo.
Na década de 1960, participou da fundação do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T), uma guerrilha urbana de esquerda que praticou assaltos, sequestros e atentados armados, influenciada pela revolução cubana e o marxismo. Foi capturado quatro vezes.
Em uma de suas prisões, em 1970, levou seis tiros e quase morreu. Pouco depois, conseguiu fugir da prisão, mas foi recapturado em 1972. Escapou novamente naquele mesmo ano, mas foi preso mais uma vez, permanecendo preso até 1985.
Em uma de suas fugas, em setembro de 1971, saiu por um túnel junto com outros 105 presos tupamaros, entrando para a história como uma das maiores fugas do sistema prisional do Uruguai.
Durante os quase 14 anos que ficou preso, Mujica foi torturado e sobreviveu em condições extremas, muitas vezes passando por longos períodos de isolamento em caixas de concreto.
Quando os militares uruguaios deram o golpe de Estado em 1973, ele foi incluído em um grupo de “nove reféns” tupamaros, e ameaçado de morte caso a guerrilha voltasse a atuar.
Mujica costumava dizer que, durante aquele período, conheceu de perto a loucura. Sofreu delírios e chegou a conversar com formigas. Mas também aprendeu a se conhecer melhor.
“Esses anos de solidão foram provavelmente os que mais me ensinaram”, disse Mujica à BBC Mundo, sob as árvores de sua chácara.
‘A realidade é teimosa’
Mujica foi libertado em 1985 graças a uma anistia concedida com o fim do regime militar no Uruguai. Ele contava que o dia que recuperou sua liberdade era a lembrança mais feliz de sua vida.
“Essa coisa de presidência é uma bobagem. Nem se compara”, assegurava.
Antes de chegar ao cargo máximo, foi deputado e senador. E, em 2005, se tornou ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca no primeiro governo da Frente Ampla, a coalização uruguaia de esquerda.
Nesses anos, sua popularidade cresceu rapidamente e Mujica percorreu o Uruguai de ponta a ponta, se tornando o candidato à presidência pela Frente Ampla.
Sem negar seu passado de guerrilheiro, cuidou de sua imagem e de suas palavras mais do que o costume para ganhar a confiança dos uruguaios ao centro do espectro político, e venceu o segundo turno das eleições de 2009 com quase 53% dos votos.
Tinha 74 anos mas, para o resto do mundo, ainda era um desconhecido.
Quando Mujica foi eleito, a esquerda latino-americana estava em ascensão, e tinha entre suas principais figuras o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o venezuelano Hugo Chávez.
Embora mantivesse uma relação próxima com ambos, Mujica se distanciou do socialismo chavista e governou à sua própria maneira, mostrando pragmatismo e ousadia em várias ocasiões.
Durante seu mandato, em um contexto internacional bastante favorável, a economia uruguaia cresceu uma média anual de 5,4%, o índice de pobreza caiu, e o desemprego foi mantido em níveis baixos.
Quando terminou seu governo, Mujica tinha um alto índice de popularidade doméstica, próximo de 70%, e foi eleito senador, mas também passou a dedicar parte de seu tempo a viajar pelo mundo.
Durante seu governo, o Uruguai também chamou a atenção por leis sociais que foram aprovadas no parlamento, como a descriminalização do aborto, o reconhecimento do casamento entre homossexuais e a regulamentação do mercado de maconha por parte do Estado.
Mujica garantia que nunca tinha experimentado cannabis e que legalizá-la não estava em seus planos como presidente. Mas, durante seu mandato, optou pela legalização, argumentando que a proibição havia fracassado e que queria resgatar parte do mercado das mãos do narcotráfico.
Por essas ações, recebeu elogios de liberais como o vencedor do Nobel de Literatura peruano, Mario Vargas Llosa, além de ter sido indicado entre as 100 personalidades mais influentes de 2013 pela revista Time. O Uruguai também foi nomeado o país do ano pela revista britânica The Economist.
Um sheik árabe chegou a oferecer a Mujica um milhão de dólares pelo seu carro — que ele recusou —, mas o ex-presidente do Uruguai manteve o fusca, que se tornou um dos seus grandes símbolos. Em alguns países que visitou após deixar a presidência, como Guatemala e Turquia, ele foi recebido com fuscas no aeroporto. E se mostrava surpreso com tanta fama.
“A cada manhã que você se levantar, pense e faça um balanço de 10 minutos na sua cabeça, se o que você fez está certo ou errado”, aconselhou Mujica a milhares de jovens que o ovacionaram na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), meses depois de deixar a presidência.
“E, por favor, não vivam com medo da morte. A aceite como os bichos do mato. O mundo vai continuar girando e nada vai acontecer. Não vai ficar com todo esse medo à toa”, disse. “É preciso ser mais primitivo.”